Éter na magia
Ao fim do congresso, como cerimônia de encerramento, chamamos os meninos da FEBEM para realizarem um número musical. Aparte do sem número de piadas imbecis, preconceituosas e de mau gosto que ouvi durante os meses anteriores de preparativos e de todo encargo burocrático que tivemos que transpor para que os meninos fossem liberados de suas unidades, a apresentação foi fenomenal. Vários instrumentos de percussão, permeados por bons e precisos acordes do violão e do cavaco, somados a uma escolha de muito bom gosto do repertório, fizeram com que a fria comunidade dos físicos presentes soltasse o humano que têm, creio, dentro de si. Alguns caíram no samba, outros empunharam um violão e se arriscaram na música. Outros ainda, mais tímidos, limitaram-se a um bater de palmas durante um ou outro ponto de entusiasmo e geralmente num contra-tempo que nem mesmo o Hermeto Pascoal encontraria uma maneira de harmonizar com o ritmo da música. Mas todos, sem exceção, ovacionaram os músicos e pediram, de modo efusivo, o famoso “bis”.
Além disso, os meninos também fizeram os blocos de anotação do congresso; com material reciclável e capa de filtro de café usado que conferia, além de um toque estético refinado, um aroma dos mais agradáveis. Foi muito interessante ter presenciado a apresentação. Por um lado, a composição orquestral daqueles instrumentos a serviço do samba antigo muito me lembrou as rodas arquitetadas pelo seu Berlim, o que obviamente me comoveu. Mas a inclusão da molecada naquele meio também foi comovente. O triste é saber que fatos assim são efêmeros e raros. A regra é não existir espaço pra essa molecada. Espaço de qualquer tipo. Lazer, cultural, trabalho, nada. E não me canso de repetir: essa segregação social é, sem sombra de dúvida, um dos maiores desperdícios de talento que podíamos “arquitetar”. Fora o inegável jeito musical, tem moleque que desenha inimaginavelmente bem. Outros mal sabem falar, mas compõem letras de RAP que são de uma profundidade inquestionável. Ainda outros, destacam-se em rapidez e agudeza de raciocínio. E por ai vai.
Mas o mais difícil é conseguir um meio pra molecada desenvolver seu talento inato. Quase ninguém abre espaço. É ex-detento, marginal, moleque estranho, nem pensar em dar espaço. Desse modo resta a rua. O traficantezinho que dá éter de graça pro moleque que ta lá de bobeira. Com éter na cabeça, nem conversar dá certo e aquela magia anterior vai ralo abaixo. O que sobra é éter na magia. E qualquer coisa eterna fica só na novela mesmo.