Monday, January 19, 2009

Reminiscências

Mais dia, menos dia isso sempre acontece. É passatempo predileto nosso elembrar as infâmias elaboradas e impostas pelo senhor Marny a nós, netos. Dessa vez, como de todas, tive informações a mais. Estávamos eu (um Marny) e o Marny, conversando sobre o Marny. Aliás, anos atrás fui descobrir que Marny é uma palavra polonesa que significa triste. Logo, ela se aplica bem, pelo menos pra mim, em alguns dias, atos e, tenho de concordar, também a algumas bostagens.

Mas voltemos ao assunto. Eu e o Marny lembrávamos de algumas idas à caixa d'água da
casa da praia. Essas histórias normalmente têm mais graça quando contadas na hora, erbalmente, e geralmente com a platéia num estado entre pouco sóbrio e dando alvíssaras a noticiário de óbito. Mas em todo caso tentemos.

Dizia eu, conversávamos sobre nossas idas à caixa d'água. Aquele lugar escuro, empoeirado, perto do teto (e do inferno), repleto de artrópodes purulentos, cheia de fios de eletricidade, e com temperatura média de 76 graus Celsius. Se não me engano, foi lá, no embocadouro desse claustro que o vô, após espetar o mancho com a lanterna para que subisse mais rápido chamou-o pela primeira vez de aranha.

Antes das histórias vamos a algum contexto: a caixa d'água fica no sótão da casa da praia, cuja entrada é por um buraco no teto do último quarto da casa, o popular IML. A tal caixa, colocada com maestria exatamente no lugar onde os fios se entrecruzavam volta e meia vazava, ou parava de fornecer água, ou resolvia por abrir-se em furos, ou qualquer outra desculpa para nos forçar a lhe encontrar.

Subi lá várias vezes. Na primeira o vô me deu um conselho valiosíssimo: "Cuidado, não pisa no fio nem no forro!". Ótimo, olhei e só o que vi foi fio e forro. E uma vez que não costumo achar que posso voar (pelo menos não sóbrio) gritei ser impossível chegar à tal caixa. Mal sabe o homem do que é capaz quando estimulado, a necessidade realmente é a mãe da criatividade. Entre continuar ouvindo toda sorte de impropérios do vô e chegar, sabe-se lá como, à maldita caixa, optei por singrar o sótão o mais rápido possível. Foi-me custoso. Veja bem, é difícil admitir mas tenho medo de aranhas. Medo aliás é pouco para descrever meu pânico esquizofrênico. Pra mim, uma aranha é prova cabal de que Deus não existe. Se existisse, Ele na sua magnânima sapiência deixaria que somente as lagartixas e os batráquios se encarregassem do equilíbrio natural. Mas a aranha existe, e a vida é cruel.

Cruzando o sótão entre o calor estonteante, os fios, o forro e os apelidos nada agradáveis do vô, eis que noto a presença de aranhas terríveis, como todas. O vô ficava de fora, apenas com a cabeça no sótão e com uma lanterna que era capaz de iluminar a alma. Nós, entretanto, éramos munidos com uma lasca de DUREPOX e uma lanterninha paraguaia vagabunda, como todas, que ficava presa entre os dentes, pois as mãos deviam estar sempre prontas para matar um mosquito faminto ou servir de abano jogando mais ar quente na cara. A pressa era por estancar um vazamento d'água. Coisa que geralmente é simples, não fosse tudo o que descrevi até agora. Eu não achava o bendito furo. O tempo passava, um olho procurando o furo, o outro nas aranhas malditas, ainda o outro piscando (e eu sei que você me entendeu), as mãos tateando a caixa, os dedos dos pés lembrando as garras de um tucano para não escorregar da viga para o forro, os ouvidos repletos de impropérios cada vez mais acentuados. E o calor, sempre o calor.

Decidi reverter a situação, dei a volta pela caixa e, longe do olhar atento do vô e da lanterna que a tudo via, bradei ter encontrado o furo. Mentira. Mentira das mais deslavadas, mas funcionou por algum tempo. Amassei com pressa o DUREPOX e grudei numa parte aleatória da caixa. Suava tanto que nem precisou de água pra dar a liga ao DUREPOX. Eu estava livre, desci rápido, lépido, pronto pra correr pro mar. Quando a bomba d'água foi ligada para testar o fim do vazamento, obviamente não havia fim nenhum. E, mais vazamento, mais palavras doces ao pé do ouvido e mais expedições ao sótão.

Mas não era só eu, claro que não, que usava de algum subterfúgio para tornar a ida ao sótão menos espartana. Conta-se que o Marny, certa vez, após algum tempo suando às bicas no calor desértico do sótão, lá pelo meio-dia, não aguentou mais e sem ninguém avisar, num assomo de desespero, destelhou uma parte do sótão colocando a cabeça pra fora da casa. Tragou o ar com denodo, lembrando novamente que respirava na atmosfera terrestre e não na marciana. E prometeu, olhando pro mar, estar lá o mais rápido possível. Novamente recomposto, tratou logo da caixa pra cumprir sua promessa. Aos mais novos, que nada disso enfrentaram, só resta rir das histórias. Pelo menos até um novo vazamento.