Friday, March 07, 2008

Fatos existem

Fatos existem, de fato, para que deles nos lembremos. Pelo menos assim o é com alguns. Na lembrança, que nada mais é do que reconstrução, a verdade é seccionada em duas, a verdadeira e a contada. Do ponto de vista de quem conta, essa bipartição é amplamente desejável. Justifico: se assim não fosse, todas as histórias seriam insossas, pálidas, nada comparáveis com o que podemos encastelar. Dado um mísero fato, uma fagulha que seja e um pouco de imaginação (do latim: tempo livre a ser jogado fora) e pronto, eis que nasce uma bela passarinhada, digo h(e)istória. É algo como um filme baseado em fatos reais, com poucos fatos, menos ainda reais e sem nenhum filme efetivamente.

Assim de supetão, vem-me à mente um ocorrido em tempo e lugar distante, quando (e onde) nadar no mar de Itapoá não violava nenhuma restrição ou admoestação da polícia ambiental. Negão, Mancho e mim estávamos pagando penitência há algum tempo na praia. Nossa rotina era permeada por uma cerveja de procedência duvidosa comprada pelo Vô na tentativa de nos afastar da sua Skol. Além disso, cerrávamos ao fim do dia um lanche no rancho da Tia Cida. Aqui vale um aparte. Recentemente foi aventado no blog que os filamentos unidimensionais de diâmetro reduzido que eu, eventualmente (tudo bem, religiosamente), encontrava no meu misto-quente eram na verdade pentelhos, pelos pubianos e sei lá mais o que. Darei nome aos bois: a acusação foi feita pelo Mancho e corroborada pelo Negão. Analisemos; eu que seguramente estava mais perto dos referidos fios atesto que eram de cabelo. De cabelo da cabeça (de cima), para que tudo fique bem claro. O Mancho, a média distância e com a lata cheia da cerva esquisita diz que não e é apoiado pelo Negão que, sabidamente, não enxerga nada senão vultos a mais de vinte centímetros da fuça. Tendo a ampla vantagem da distância e da condição visual posso terminar esse adendo afirmando que meus mistos continham nada mais do que os ingredientes usuais permeados por um ou outro fio de cabelo. Certamente por descuido da própria dona Cida que avançava em idade e recuava em estrutura capilar, aliás, como todos nós.

Mas voltando então ao mote principal, nesses períodos de férias costumávamos ir até o Maresia pra tomar umas geladas e tirar da boca o gosto esquivo da nossa cerva cotidiana. Posteriormente, em uma reunião informal, Mancho revelou certo saudosismo alegando que a “palatabilidade” da referida cerva não era de todo mal.) No Maresia já desfrutávamos de certa fama, ganhada pelo excelente desempenho do Negão no concurso do requebra tempos atrás. Negão fisgou uma honorável medalha de bronze que nos rendeu desafetos certa vez (como relatado por Sancho). Como o som era muito alto e nosso teor de sobriedade muito baixo, desenvolvemos um gestual que sintetizava tudo o que conseguíamos falar: onde está fulano?, quem pega a próxima cerva?, vou ao banheiro, por que estou sendo preso?, etc. Tudo isso era habilmente dito, e compreendido, pelo mais rudimentar meio de comunicação: sinais e alguns grunhidos. Era o máximo que conseguíamos. Várias coisas nos ocorriam nessa antro e é pena me lembrar de poucas delas. Lembro-me, porém de em certa ocasião sermos abalroados por um sujeito que se dizia gremista e que não compreendia como dois gremistas podiam andar ao lado de um corintiano. E olha que naquela época o Corinthians era um pouco menos deplorável. Mais alguns minutos de conversa e o próprio sujeito ficou amigo do nosso corintiano.

Salvo engano meu foi por essa época que o Mancho começou a desenvolver um passe de dança que ditou moda em Itapoá e que posteriormente ficou conhecido como o “Marreco-de-ré”. Com toda a desenvoltura que lhe é peculiar o Mancho acabou mostrando que seu talento musical não se restringia às belas execuções ao piano, embora eu tenha que admitir minha preferência a estas em detrimento daquela. Recentemente, mas não muito, Mancho repetiu seu famoso passe no mesmo Maresia ao som de uma banda de Reage underground. Poucos sobreviventes daquela época reconheceram a outrora afamada dança e seu criador. D’outra feita, nosso costumas ritual no Maresia foi interrompido por um novo concurso de dança. Mesmo com o excelente resultado no concurso anterior e o inovador passe criado, nossa trupe resolveu se manter de fora ostentando o orgulho dos que param no auge. De minha parte nada poderia ser feito, a mão com que escrevo já diz bem como me saio em situações como essas.

Ainda por aqueles tempos, certa vez, encabeçados pelo Negão planejamos uma ida estratégica a São Francisco do Sul com a Parati do Vô. Cuidamos de todos os mínimos detalhes, isto é, nós mesmos, cerveja e um isopor. Munidos desse quite básico de sobrevivência saímos rumo ao inesperado destino. Algumas curvas adiante encontramos um carro tombado, várias pessoas ensangüentadas, umas duas velhotas correndo de um lado pro outro feito baratas e um bom punhado de frango com farofa espalhado pela estrada. Obviamente paramos e prestamos o devido socorro às vítimas. Colocamos os mais extraviados no carro e fomos até um quiosque que funcionava como barraca de salgado, estande de protetor solar, pronto socorro e posto de saúde. No caminho uma das velhotas reclamou tanto de dor de cabeça que nos deixou a todos com dor de cabeça. Depois, tendo nossos planos idos por água a baixo só nos restou o irredutível óbvio: cerva de dia, Maresia de noite e alguns lampejos de atenção para contar a história depois.

Enfim, a páscoa está aí e, portanto, mais uma oportunidade para engrossarmos essas linhas. Se lembrarmos de algo.