Friday, November 17, 2006

tragédia e comédia

Não é fácil descrever o que segue. Foi um tanto quanto traumático: Sancho, Nica e o “creoulinho” impedidos de seguir viagem. O apelido “creoulinho” não se refere a qualquer conotação racista. Nada além de um codinome que o tio Nelson colocou no carro preto da tia Nica.

Partimos de Dourados/MS rumo a Jataí/GO. Por causa de um manifesto de nossos grandes amigos, os adorados indígenas, fomos obrigados a utilizar uma rota alternativa, onde o risco era um manifesto dos companheiros do MST.

Tudo permanecia nos conformes. Já estávamos nos aproximando da capital Campo Grande sem maiores problemas. Após atravessarmos uma cidadezinha, optei por realizar uma manobra ousada: ultrapassar um caminhão em faixa contínua. Percebi um veículo vindo ao longe, bem longe. “Tia, acho que dá!”. Engatei uma segunda e lá fui eu. Ultrapassei tranqüilamente, mas o veículo que vinha era uma viatura caracterizada da Polícia Rodoviária Militar. Veio o sinal de luz junto com a ordem para parar. Aquela “sirenada” única: rrrrrruuuuuéeeeóoooon (onomatopéia).

Parei no acostamento. Um sujeito num veículo que trafegava na minha frente e havia feito a mesma asneira também parou. Como a viatura havia passado por nós e dado a volta, eles abordaram o primeiro trouxa que estava parado: Eu.

“Ei filho, não viu a faixa contínua?” Tentei argumentar, argüindo em meu favor uma excludente de ilicitude. Aleguei que cometi a infração por estado de necessidade, pois o caminhão estava enchendo meus olhos, pulmões, ouvidos e demais orifícios de monóxido de carbono. Pensei ainda em utilizar a tia Nica como subterfúgio, dizendo ao guardinha que ela necessitava de tratamento médico urgente. Percebi que a autoridade policial não iria cair nessa quando visse o cigarrão na mão da tia.

“O que você faz da vida, filho?” Advogado. A classe está tão queimada, que imediatamente o policial solicitou gentilmente que todos saíssem do veículo e deu uma geral em toda a bagagem. No fim, lavrou o auto de infração e me deu essa pequena recordação. Nem tentei viabilizar um acerto extra-infracional.

Mas esta recordação virou fichinha com o que estaria por vir. Imensamente feliz por ter de pegar a rota alternativa por conta dos índios, e ainda ter sido educativamente multado, a maior tragédia estava por vir.

Após passar pelo município de Chapadão do Sul, seguindo em direção à Cassilândia, um pouco antes desta última existe uma estrada de areia que nos faz economizar cerca de 70 km até Jataí. Percebi que havia chovido bastante nas últimas horas. Contudo, encorajado pela tia Nica, resolvemos arriscar pelos famosos “doze quilômetros”.

No início, bastante barro. O valente “creoulinho” foi encarando os obstáculos bravamente. Após uns 2 km, nos deparamos com um golzinho que nos abordou. “Cuidem, porque a estrada tem bastante poças”. “Siga ‘pelazesquerda’” disse um gordinho que aparentava ser menos letrado.

Ora, se um golzinho conseguiu, conseguiremos também! Mas e a parte de seguir pela esquerda? Esquerda de quem vai ou de quem vem? E o mais importante: será que o tal sujeito menos letrado sabe o que é esquerda e o que é direita? Eu não tive dúvidas. Na próxima poça (maior que muito açude do nordeste) eu fechei os olhos e segui pela esquerda. Tchibum!

O carro encavalou de uma forma jamais presenciada. O barulho da água entrando era aterrorizante. O motor, ainda ligado, não conseguia tracionar para frente ou para trás. Tia Nica desceu para tentar empurrar para trás. Quando pisou, não achou o chão. Atolou de barro até o joelho. Água entrando pela frente, por baixo, por tudo que é lado. Quando vi, minha carteira estava boiando. Desci também para tentar empurrar com todo o meu vigor físico. O cérebro nestas horas fica travado. Num momento de rara sabedoria, optamos por sair da poça e avaliar a situação de fora.

Após uns 10 minutos, quando finalmente conseguimos desatolar nossas canelas, conseguimos ter uma visão panorâmica da situação. O “creoulinho” estava atolado com a cara na lama. Lembrava um besouro conhecido como “rola-bosta” chafurdando na merda. Mas não havia graça nenhuma. O desespero já tomava conta. Estávamos atolados num lugar isolado onde poucos trouxas se aventurariam a passar, sem qualquer sinal de celular.

Optamos por seguir à pé até o município de Aporé, há uns 8 km. Andamos alguns muitos metros quando abordamos um caminhão boiadeiro. O sujeito até se dispôs a rebocar o veículo, mas não tinha corda ou cabo. “Esses boiadeiros são uns chifrudos” disse a tia. Andamos mais um pouco e solicitamos ajuda a um camarada num caminhão tanque. Esse, com sotaque nordestino, se prontificou a tirar o carro nem que fosse com as mãos. Resolvi voltar com o sujeito ao local do sinistro, enquanto a tia seguiu à pé até Aporé.

Subi na caçamba do caminhão do nosso amigo paraíba, e ali fui, acompanhado de dois cilindros de gás tóxico. Chegamos e. rapidamente, com sua destreza singular, o amigo amarrou a corda e rebocou o carro da lama. Gentilmente ele me disse para atravessar as próximas duas poças que ele ficaria para desatolar se necessário. Obviamente foi necessário. Novamente ele me desatolou. Desta vez o motor do “creoulinho” parou de vez. O paraíba me deixou num ponto seco da estrada e seguiu seu destino.

Simultaneamente, tia Nica havia abordado dois garotos que estavam passeando num jumento. Explicou a situação aos jovens que prontamente foram buscar ajuda. Vem então um camarada num CBT 1060 (lê-se “milissessenta”) bastante robusto.

Eu, junto ao veículo, numa rara parte seca da estrada, que poderia, sem exagero, ser chamada de ilha, abri o capô apenas para ver se o motor secava um pouco, já que meus conhecimentos de mecânica se restringem a bicicletas sem as complexas marchas. Nesse momento ouvi o barulho do trator ao longe. Fixei o olhar e vi que a tia Nica estava de carona, pendurada no trator, com suas madeixas esvoaçantes. Pensei positivo. Achei que estavamos revertendo a situação. Achar é a mãe de todos os erros.

O sujeito robusto do “milissessenta” não tinha muito cérebro. A idade mental do camarada era, sem dúvida, menor do que a dos garotos que estavam no jumento. Talvez ele fosse o próprio jumento. Engatamos a corrente do trator no carro. O sujeito deu partida, engatou uma terceira e partiu. Provavelmente sua memória (de PC-XT) já tinha se autoformatado, e ele havia se esquecido que estava rebocando um carro. Buzinei, dei sinal de luz. Pus o braço pra fora do carro e acenei com um boné (como nosso tio Batuta fez numa memorável situação que será contada aqui). Enfim, eu e a tia Nica fomos comendo lama até chegar no asfalto.

Lá chegando, o pulcro tratorista microcéfalo nos deixou próximo a uma oficina. Um lugar desses que, se precisar apertar uma porca, o mecânico precisa ir no vizinho pegar uma chave emprestada. O sujeito olhou, fez cara de quem entendia algo, e disse que não poderia nos ajudar. Novamente meu desespero foi contido pela tia Nica, que se lembrou que o carro tinha seguro.

Acionado o seguro, veio o reboque para nos levar até Jataí. 150 km de drama. Auto-estima pra baixo dos calcanhares. Barro até o último fio de cabelo. As meias já estavam no lixo faz tempo. Minha camiseta branca estava marrom. Um maldito vento gelado entrava pelas frestas do caminhão reboque. Para piorar, o motorista não parava de encher o saco com um desses rádios de caminhão. O sujeito estava se sentindo numa daquelas viaturas da polícia de Los Angeles.

Pois bem, finalmente chegamos em Jataí. Nosso semblante era análogo ao de quem acabara de cuidar do ultraleve do XOTKZ após uma boa noitada. Estávamos ávidos por um banho, na frustrada tentativa de recuperar um pouco da dignidade. Mas nem um jato de posto com solupã era capaz de limpar todo o barro que carregávamos.

Sofremos com algumas baixas: Minha camiseta deu Perda Total. O “creoulinho” precisou de um transplante, e ganhou motor novo. A tia Nica ficou com os calcanhar em frangalhos. E, por um bom tempo, aquela estrada desapareceu de nosso mapa.

Após tantos desastres, lembrei-me de uma teoria do interior de Goiás, dizendo que havia uma cabeça de burro nos acompanhando na viagem. “Claro... e estava sobre seu pescoço” disse Negão. Nem me ofendi. Pelo menos temos mais uma pérola para relatar.

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